23/02/2022

NA JAULA DA MONGA

ESPETÁCULO A MULHER MONSTRO 
 Por Rosinaldo Luna 



 
 Acredito que a imensa maioria das pessoas já ouviu falar da mulher monstro, a Monga dos parques de diversões, a moça que se transforma em macaco. Essa figura que eu nunca ví, mas ouvi e presenciei inúmeras vezes crianças, adolescentes e até adultos saírem correndo de dentro da jaula da fera. Nunca tive coragem de entrar ali. Tenho um verdadeiro fascínio por esse personagem, a ponto de nunca ter entrado em sua jaula. Até a última quinta feira 17//02/2022 quando fui finalmente assistir ao espetáculo da S. E. M. Cia de Teatro que faz temporada todas as quintas feiras de fevereiro no circo do Bisteca e Bochechinha. Os famosos “prints” das redes sociais foram o impulso para a construção do texto, uma colagem de falas reais de figuras públicas e de anônimos, atualizando o conto “Creme de Alface” do renomado escritor gaúcho Caio Fernando Abreu. A peça aborda os absurdos lidos e ouvidos de forma tão escancarada no dia a dia e, agora, acentuadas nos últimos tempos não só na internet. A criação do espetáculo começou em 2015, na efervescente crise política, financeira, ética e moral do país, e joga na nossa cara a intolerância, decorrente da discriminação vista e sentida no convívio social. Durante pouco mais de uma hora, o ator José Neto Barbosa domina totalmente uma plateia hipnotizada com seu personagem patético, ridículo, preconceituoso, xenofóbico, homofóbico apesar de “ter amigos gays”. Negacionista convicta, se entope de cloroquina, é contra as cotas, contra os programas sociais, contra tudo que não a beneficie e garanta seus mimos de madame fútil. Aponta, condena a morte, aponta arma para os menos favorecidos e minorias e tudo isto com uma bíblia nas mãos e em nome da honra e da família. Alguem já presenciou uma cena com um personagem assim? O espetáculo começa com a monga algemada por correntes em uma jaula. Apesar de nunca ter estado na jaula do monstro, creio que o processo se dá ao inverso, no parque a mocinha se transforma em monstro na peça o monstro se transforma em uma mulher cis, loira artificial, e muito mais monstruosa que o próprio monstro que a aprisiona. Escrita pelo próprio José Neto Barbosa, esse jovem ator potiguar que tem hoje destaque nacional tendo ganhado os mais importantes prêmios do teatro brasileiro, inclusive com o Prêmio de Melhor Monólogo Nacional pela academia de artes do teatro no Brasil e melhor ator e melhor espetáculo pelo Festival Internacional Janeiro de Grandes espetáculos onde recebeu o prêmio COOPERGÁS. 
 Polêmico, o espetáculo teve problemas em vários lugares por onde passou. No festival de teatro de Curitiba foi proibido de ser apresentado no espaço oficial do evento, porém, se apresentou na rua, nas ruinas históricas, de forma gratuita e teve recorde de público. Em Pernambuco o ator foi apedrejado por militantes bolsonaristas que invadiram o local da apresentação e atiraram pedras contra os artistas. Mesmo assim, eles não desistiram.

José Neto Barbosa

Depois da chegada aterradora da pandemia, como todos os artistas, a companhia entrou em recesso forçado só retomando as atividades ano passado, cumprindo todos os protocolos de biossegurança, com público reduzido para garantir o mínimo de risco para quem vai assistir. Fazer um monólogo é uma experiência única, depois de pisar no palco o ator está só, como um barco à deriva. É preciso muita segurança para que o texto seja conduzido, que o ator consiga prender a atenção da plateia e A Mulher Monstro é um dos mais complicados, técnicos e difíceis textos que já vi. O personagem instável, oscila entre lagrimas e gritos de ódio, comicidade e angustia, tudo isso aliado a luz, ao improviso, a interação direta com a plateia num jogo de troca de textos que só um grande ator pode dominar além da cena em si. A jaula onde o ator está aprisionado é uma das soluções cênicas mais opressoras que já presenciei. Confesso que em certos momentos cheguei a sentir pena daquela mulher tão presa, tão tolhida até de pensamentos. Aquela jaula parecia esmagar os ossos da daquele ser que mesmo berrando palavras de ordem e ódio, me parecia um ratinho indefeso diante da força do seu predador. Tiro meu chapéu para o José Neto. Técnico sem esquecer a emoção, seguro, objetivo e consciente do que quer dizer e falar. Me impressionou em uma das cenas mais fortes quando a mulher chora, que ficamos, as pouco mais de cem pessoas da plateia; sim, o público é reduzido, estáticos, no mais profundo silêncio por quase cinco minutos. Aquele ator nos acorrentava com os olhos. Tinha medo de respirar alto e ser atacado por aquele ser tão visivelmente instável. Depois desse tempo, esperando o que viria depois, aquela mulher que esbravejava, gritava, xingava e ofendia se desmancha em pranto diante de nós. Ela indefesa em sua prisão e do lado de cá, todos nós, incapazes de fazer alguma coisa, igualmente presos e oprimidos em nossos traumas e frustrações. Na realidade, estamos nós também aprisionados em nossas jaulas, sejam filosóficas, sejam ideológicas, religiosas, sociais. Estamos todos presos e imobilizados por nossos próprios monstros. Todos nós temos uma monga dentro de nós. Monstros impostos por padrões e regras sociais que são criadas para dominar e aprisionar. 
Tenho muita admiração pelos atores. Tenho ainda mais admiração pelo ator José Neto Barbosa e por tudo que ele representa para o teatro potiguar. Ainda dá tempo de conferir. Bom espetáculo a todos. 

Rosinaldo Luna 

 SERVIÇO: Espetáculo Teatral A Mulher Monstro 
Dias: 03, 10, 17 e 24 de fevereiro 2022 (quintas-feiras) 
Horário: 20:00h 
Local: Estacionamento do Shopping Cidade Verde – Circo Bisteca e Bochechinha Endereço: Av. Ayrton Senna, 1995, Nova Parnamirim 
Classificação indicativa: 16 anos 
Ingressos: Na bilheteria ou pelo 
Simpla: https://www.sympla.com.br/a-mulher-monstro-no-circo__1466906