Os atores Isis Valverde e Fabrício Boliveira em cena do filme 'Faroeste caboclo' (Foto: Divulgação)
No filme “Faroeste caboclo”, Jeremias não desvirgina mocinhas inocentes
nem diz que é crente mas não sabe rezar, como na descrição da música
que serve de inspiração à obra. A versão cinematográfica, no entanto,
traz delito ainda mais nocivo cometido pelo vilão: ele é mais cativante
que João de Santo Cristo, protagonista e condutor da narrativa.
Em tese, não seria problema. Mas é, porque exemplifica descuidos na
construção do herói que viaja da Bahia a Brasília para melhorar de vida.
Se Jeremias – que prossegue “traficante de renome”, “maconheiro
sem-vergonha” e promotor da “rokconha” – tem direito de figurar em
passagens de humor, drama ou mesmo caricatura, a João resta um
comportamento previsível.
Não se pode negar, contudo, que há fidelidade ao material de origem: o
herói é tão trágico quanto na canção. No todo, o filme de René Sampaio é
leal à quilométrica letra da Legião Urbana e à reconstrução de época –
as coisas se passam nos anos 1980 (
veja ao lado trailer de "Faroeste Caboclo").
Por outro lado, já na primeira cena, o longa desobedece (beneficamente) os versos de
Renato Russo,
ao inverter a ordem dos fatos. A intenção talvez seja provocar alguma
surpresa numa audiência que provavelmente já conhece o conteúdo. Ou
talvez seja justificar o “Faroeste” que está no título. O que se vê na
tela é uma tomada em close nos olhos de João (Fabrício Boliveira, da
série “Suburbia”), artifício habitual em produções que retratam o velho
oeste. Funciona como aviso do diretor e de sua equipe: isto é um filme
com referências próprias, não um clipe.
Uma das liberdades mais evidentes tomadas é a introdução precoce de Maria Lúcia (
Isis Valverde)
e do citado Jeremias (Felip Abib). É medida providencial, uma vez que
fica logo estabelecido o romance e o drama essenciais do filme. Na
música, eles apareciam mais tarde. Os outros acertos são, aparentemente,
acessórios – e fundamentais. É a criação de personagens e situações que
não existiam na música. Caso do policial a cargo do ator
Antonio Calloni,
bem no papel. E de passagens “inéditas” e amenas nas quais João é menos
tenso, ansioso. Nesses momentos, ele supera a obviedade.
Felipe Abib vive o personagem Jeremias
(Foto: Divulgação)
“Faroeste caboclo” começa confuso, com ações aparentemente
inexplicáveis de João. Nada com que se preocupar. Conforme a história
anda, elas vão sendo justificadas em flashbacks. O roteiro privilegia a
relação amorosa entre João e Maria Lúcia. Ele sofre por ser pobre, negro
e discriminado – recorre ao crime e à violência para ascender. Ela
sofre por algum motivo qualquer não revelado, é rica (filha de senador,
personagem de Marcos Paulo), branca e recorre à maconha com razoável
frequência.
Embora o roteiro não esclareça de onde vem o sofrimento da jovem, Isis
Valverde é suficientemente carismática para lidar bem com a limitação.
As circunstâncias em que se dá seu envolvimento com o João são
improváveis, mas o público acredita no sentimento entre os personagens.
As cenas de sexo entre ambos – novamente com bastante close e o
contraste de cor de pele sublinhado – se prestam a isso.
Avaliado o conjunto, resta de “Faroeste caboclo” o zelo com a música de
Renato Russo: quem assistir ao filme com a letra em mãos não vai ter
tantas reparos a fazer quanto aos principais fatos – o modo como se
apresentam é que muda. E ainda o vilão Jeremias. Ele não chega a fazer o
que o Coringa de Heath Ledger fez com o Batman de Christian Bale em
“Cavaleiro das trevas” (2008). Mas melhora tudo sempre que aparece, a
ponto de se torcer por seu regresso – outra prova do efeito positivo de
se infringir a música. Na canção da Legião, Jeremias entra em cena
apenas na segunda metade dos versos. O vilão só não merecia a afetação
das cenas que precedem o duelo.
By Cauê Muraro
Do G1, em São Paulo