30/09/2011

AQUELA DOSE DE AMOR

AQUELA DOSE DE AMOR - Antonio Francisco



(do livro DEZ CORDÉIS NUM CORDEL SÓ, Ed. Queima-Bucha, Mossoró, 2006)

Antonio Francisco



Um certo dia eu estava

Ao redor da minha aldeia

Atirando nas rolinhas,

Caçando rastros na areia,

Atrás de me divertir

Brincando com a vida alheia.



Eu andava mais na sombra

Devido ao sol muito quente,

Quando vi uma juriti

Bebendo numa vertente.

Atirei, ela voou.

Mas foi cair lá na frente.



Carreguei a espingarda,

Saí olhando pro chão,

Procurando a juriti

Nos troncos do algodão,

Quando surgiu um velhinho

Com um taco de pão na mão.



O velho disse: - “Senhor,

Não quero lhe ofender,

Mas se está com tanta fome

E não tem o que comer,

Mate a fome com este pão,

Deixe este pássaro viver.”



Eu disse: - Muito obrigado,

Pode guardar o seu pão...

Eu gasto mais do que isso

Com a minha munição.

Eu mato só por prazer,

Eu caço por diversão.



O velho disse: -“É normal

Esse orgulho do senhor

E todo esse egoísmo

Que tem no interior.

É porque falta no peito

Aquela dose de amor.



Se eu tivesse botado

Ela no seu coração,

Você jamais mataria

Um pardal sem precisão,

Nem dava um tiro num pato

Apenas por diversão.”



Eu fiquei muito confuso

Com as frases do ancião.

Aquelas suas palavras

Tocaram meu coração

Derrubando meu orgulho

E a vaidade no chão.



Me vali da humildade

E disse: - Perdão, senhor,

Desculpe a minha arrogância,

Mas lhe peço um favor,

Que me conte essa história

Sobre essa dose de amor.



O velho disse: - “Pois não.

Vou explicar ao senhor

Porque mesmo sem querer

Sou o maior causador

De hoje em dia o ser humano

Ser tão carente de amor.



Isso tudo aconteceu

Há muitos séculos atrás

Quando meu Pai fez o mundo

Terra, mares, vegetais.

Me pediu pra lhe ajudar

No último dos animais.



Pai me disse: - ‘Filho, eu fiz

Da formiga ao pelicano;

Botei veneno na cobra,

Bico grande no tucano,

Agora estou terminando

Este animal ser humano.



Mas ficou meio sem graça

Este animal predador...

O couro não deu pra nada,

A carne não tem sabor,

Na cabeça tem juízo,

Mas, no peito, pouco amor.



Por isso que eu lhe chamei

Pra você lhe consertar,

Botar mais amor no peito,

Lhe ensinar a amar

E tirar dessa cabeça

O desejo de matar’.



Depois disse: - ‘Filho, vá

Amanhã lá no quintal,

No casa dos sentimentos,

Perto do pote do mal...

Traga a dose de amor

E bote nesse animal’.



De manhã eu fui buscar

Aquela dose sozinho,

Mas na volta me entreti

Brincando com um passarinho

Perdi a dose do amor

Numa curva do caminho.



Quando eu notei que perdi,

Voltei correndo pra trás,

Procurei em todo canto,

Mas cadê eu achar mais.

Aí eu fiz a loucura

Que toda criança faz.



Voltei, peguei outra dose

Igualzinha a do amor,

O vidro da mesma altura,

O rótulo da mesma cor...

Cheguei em casa e botei

No peito do predador.



Mas logo no outro dia

Meu pai sem querer deu fé

Do animal ser humano

Chutando o sapo com o pé

E no outro ele mangando

Dos olhos do caboré.



Vendo aquilo pai chorou,

Ficou triste, passou mal,

Me chamou e disse: - ‘Filho,

O bicho não tá normal.

O que foi que você fez

No peito desse animal?’



Quando eu contei a verdade

De tudo aquilo que eu fiz

Pai disse tremendo a voz:

- ‘Eu sei que você não quis,

Mas você botou foi ódio

No peito desse infeliz.



Esse bicho inteligente

Com esse ódio profundo,

Com pouco amor nesse peito

Não vai parar um segundo

Enquanto não destruir

A última célula do mundo.



Depois daquelas palavras,

Chorei como um santo chora.

Quando foi à meia-noite

Eu saí de porta afora

E nunca mais eu pisei

Na casa que meu pai mora.



Daquele dia pra cá

É esta a minha pisada,

Procurando aquela dose

Em todo canto da estrada,

Pois, sem ela, o ser humano

Pra meu pai não vale nada.



Sem ela, vocês humanos

Não sabem dar sem pedir,

Viver sem hipocrisia,

Ficar por trás sem trair

Nem distante do poder

Nem discursar sem mentir.



Sem ela, vocês trucidam

E batizam os crimes seus.

Na era medieval

Queimaram bruxas e ateus

E perseguiram os hereges

Usando o nome de Deus.



Sem ela, foram pra África

E fizeram a escravidão...

Com os grilhões do preconceito

Escravizaram o irmão

Com a espada na cintura

E uma bíblia na mão’.



O velho disse: - “Perdoe

Ter tomado o tempo seu.

Consertar vocês, humanos,

É um problema só meu.”

Aí o velho sumiu

Do jeito que apareceu.



E eu fiquei ali em pé

Coçando o queixo com a mão,

Pensando se era verdade

As frases do ancião

Ou se era tudo fruto

Da minha imaginação.



E naquele mesmo instante

Vi passando na estrada

A juriti que eu chumbei

Com uma asa quebrada,

Mas não tive mais coragem

De atirar na coitada.



Joguei fora a espingarda,

Voltei olhando pro chão

Procurando aquela dose

Nos troncos do algodão

Pra guardá-la com carinho

Dentro do meu coração.



Se acaso algum de vocês

Tiver a felicidade

De encontrar aquela dose,

Eu peço por caridade

Derrame todo o sabor

Daquela dose de amor

No peito da humanidade.

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